-Era uma vez um urso. Desconfiado, casmurro por fora mas um pobre diabo crédulo, inofensivo, bonacheirão e palerma. Chamava-se Povo e tinha por comadres duas raposas, as mesmas que se revezavam no governo da floresta. Como bom urso que era, convidava as suas comadres para jantarem consigo; quanto mais não fosse, pelo menos de quatro em quatro anos, que era a altura em que as raposas todas, corriam a floresta inteira: feiras, mercados, clubes, aldeias recônditas da floresta. Nessa altura todas as raposas iam a todo o lado. -Fosse qual fosse a raposa convidada, chegava de mansinho e contava ao urso sonhos, projectos, histórias e promessas, muitas promessas de um bom governo e de um futuro melhor Passava-lhe a pata pelo pêlo, trazia-lhe um programa de governo e dizia-lhe com um sorriso matreiramente honesto:
- Lê isto que isto é a mais pura das verdades.
-O urso punha-se a ler e a sonhar e de tanto sonhar acordado adormecia.
-A raposa então, comia as papas dos dois, palitava os dentes para estarem brancos no próximo debate televisivo, lavava as mãos das promessas que trouxera e ao acordar o urso dizia-lhe:
-Não comas mais que te pode fazer mal. Aperta antes o cinto em nome de Portugal.
-Depois, saíam os dois a dar um passeio. A raposa montada em cima do urso ia cantando:
-Raposinha gaiteira, farta de papas vai à cavaleira!
-A cada quatro anos era sempre assim. Ora uma, ora outra e às vezes ambas, lá iam comendo as papas ao urso que emagrecia a olhos vistos.
-Até que um dia o urso caiu em si. Estava farto de escolher entre aquelas raposas matreiras e semelhantes em quase tudo. Estava farto de estar cada vez mais magro e de andar com elas às costas.
-Na seguinte visita das raposas, deu a todas elas uma patada de urso que as atirou para fora da floresta.
-Passou-se tempo, outras raposas vieram e ocuparam o lugar das anteriores. Agora, não há nada mais triste, nada mais tintamarresco, mais bertoldo e histriónico do que do que ver o urso Povo no Parque Expo em Lisboa, na Baixa do Porto, no Geraldo em Évora ou na Praça da Sé em Bragança com as raposas sobre o lombo a cantarem:
-Raposinha gaiteira, farta de papas vai à cavaleira!
Adaptado de: “Os três partidos e o povo”
In “As Farpas” de Ramalho Ortigão
2 comentários:
não sabia que o texto erra de ramalho ortigão. li "farpas escolhidas", ha pouco tempo e fiz referência a isso no meu blog
O texto podia ter sido escrito agora que assentava às mil maravilhas no nosso estado da Nação.
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