quarta-feira, janeiro 25, 2006

Atneu e Cesareia












-Atneu era instalador de parabólicas; Fora na tropa que aprendera a ignorar as vertigens e o medo das alturas. Antes das parabólicas, montara antenas de tv, antenas de telemóveis, limpara chaminés, lavara janelas em arranha-céus e trabalhara no alto de postes de alta tensão. Desafiava a altitude e a gravidade todos os dias da sus vida mas nem a altitude nem a gravidade o sabiam e quando o descobriram, vingaram-se. Caiu, caiu em desgraça e caiu em peso juntamente com uma parabólica colectiva das mais caras do mercado. Aterrou num terraço de condomínio depois de furar um toldo novinho em folha e de esmagar uma mesa de piquenique e duas cadeiras de plástico. Não morreu mas partiu os dentes todos e entre eles o dente de ouro, que era o bem mais preciosos que possuía naquele tempo.

-Ao chegar a casa desdentado, com meia dúzia de pontos no lábio superior e outros tantos no inferior, descobriu que a esposa, Cesareia, fora ao minimercado da esquina e não voltara para casa. Fugira com um técnico de informática com quem namorara antes de conhecer Atneu.

-Atneu, triste por se ver abandonado, odontologicamente deprimido e defraudado de esperança, fez contas à vida. Passou em revista a sua conta bancária e acabou numa loja de artigos em segunda mão, à procura de uma dentadura que lhe servisse. A si e às suas magras poupanças.

-Tudo parecia correr, senão bem, pelo menos não pior do que de costume. Até que uma semana depois, pouco antes de adormecer, teve a sensação de que na penumbra do seu quarto ouvia chamar por si, baixinho e suavemente. Ficou imóvel, quase assustado sem respirar sequer, mas a voz continuava. Era uma voz carinhosa, que sussurrava frases ternurentas por entre risinhos. Depois… bem, depois sentiu que lhe davam mordiscadelas ternas no lóbulo da orelha esquerda, mordiscadelas pequenas, como beijos roubados. Imóvel, como se mantinha, olhou pelo canto do olho e com a pouca luz com que a lua-cheia lhe iluminava o quarto, viu que o copo onde colocara a sua dentadura cuidadosamente em agua, estava agora vazio. Teve então a certeza que possuía uma dentadura feminina.

-No dia seguinte, mastigou a comida toda do mesmo modo que mamara o seu primeiro leite materno. Não voltou a ousar colocar o objecto da sua afeição na boca.

-Passou a ansiar regressar a casa e à sua companhia mais e mais a cada dia que passava. Às conversas acerca de tudo e de nada e a tudo o que aprendiam um com o outro, mesmo quando se mantinham em silêncio.

-Pela primeira vez desde à muito, muito tempo Atneu sentia-se feliz.


Rui

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