Tenho que confessar que não há em mim um único osso, músculo ou célula… que me faça não gostar do Natal, das suas envolvências e arredores. Gosto de luzes brilhantes tanto como qualquer invisual; admiro a falsidade de muita gente que se declara solidária apenas na 2ª quinzena do décimo-segundo mês de cada ano; gosto de oferecer peúgas e bibelots inúteis, tanto como qualquer mortal possa gostar e gosto de os receber; gosto de repetir a mesma música irritante durante dias a fio, apenas porque a ouvi numa rua qualquer de qualquer cidade ou vila. Repetida até ao “desespero dos simples”, através de colunas ”fanhosas” colocadas no alto de candeeiros ou em lojas do pequeno comércio que ainda usam “leitores de cartuchos” como aparelhagem e caixas registadoras com manivelas.
Gosto de cantar e canto o melhor que posso num Grupo Coral em que admiro a toda a gente a dedicação enorme e as vozes (todas elas bem melhores do que a minha). Mas a minha experiência com cantorias de “Janeiras” é limitada. Tão limitada que apenas uma única vez participei num tão arriscado evento.
Na freguesia/paróquia onde vivia, o Presidente da Junta, à falta de ideias melhores, decidiu (literalmente) cravar uma série de voluntários para retomar a antiga tradição das “Janeiras” que nunca existira naquela localidade.
De salientar que aquele de todos nós melhor voz apresentava era o Ferreira, mecânico-auto prendado que tocara Tuba numa banda filarmónica da sua terra e que não lia uma nota de pauta melhor do que uma frase com mais que três palavras.
Havia a Tininha, uma empenhada catequista solteiríssima (por razões óbvias à vista e ao ouvido) que não perdia uma ocasião para esganiçar a voz na missa dominical e não entendia mais de música do que “pedir discos” na rádio local.
O Senhor Cabral, capitão reformado que em vez de cantar gritava ordens em forma de palavras com música de fundo mas que tocava acordeão como podia e era abstémio militante.
Depois e sem ensaio algum havia também mais cinco homens, a quem não conheci por se terem embebedado nas duas primeiras casas que nos abriram as portas e nos ofereceram Vinho do Porto. E duas beatas de ocasião que chegaram com adufes nas mãos e as mãos neles.
Chovia que “Deus a dava” e lá fomos todos com uma Tuba, um acordeão, adufes, ferrinhos e fotocópias ensopadas na mão.
Recordo-me que na sétima porta que se nos abriu, mais por caridade cristã do que por saberem ao que vinhamos, surgiu à porta um homem alto dos seus sessenta anos, com um violino na mão e um ar curioso. Era um vizinho meu. Foi aí precisamente, que a Tininha, imaginando que seria este um admirador das “Janeiras” e que se prestaria a um acompanhamento musical qualquer, iniciou o seu “solo”. Cantou todo o nosso reportório e músicas que conhecia da Igreja. Cantou tudo o que conhecia e algumas que estou certo inventou na altura, isto enquanto eu batia nos ferrinhos, as beatas espancavam os adufes e o capitão Cabral abanava o seu acordeão para que a água saísse por algum lado. O da Tuba voltara para casa e os restantes vinham já muito lá para trás, encostados uns aos outros aos tropeções.
Quando já só lhe faltava cantar o hino nacional, a Tininha ganhou coragem e acabou por perguntar ao Senhor Yur: “Mas então, o senhor não toca nada connosco?”.
Ele sorrindo respondeu no seu portugês macarrónico: “Num entendo muito portugués bem Sou Chéco… estava a ensaiar par a orquestra Metropolitana… trabalhar lá eu!”.
Foi nesse momento que olhei para a janela do meu quarto… com a luz apagada e nunca me lembro de ter desejado tanto estar lá sozinho, seco, sóbrio e em silêncio como nessa altura.
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4 comentários:
Olá amigo Rui!
O seu texto já saiu na aldeia e eu fui a 1ª a comentar.ihihih...
Também já tinha lido o final em 1ª mão.O que eu me divirto com os contos.O seu está impecável :)
Jocas gordas
Lena
Sim senhor! Grande aventura essa eheheh
Mas cá pra mim, a culpa foi do presidente da junta que não fez bem o trabalho de pesquisa. Não se pode "retomar algo que nunca existiu" eheheh primeiro tinha de fazer uns ensaiozitos para a turma ficar bem afinadinha ahahah
Parece que a Tininha adivinhava que a missão de "cantar as janeiras" tinha os dias contados, daí a pressa de cantar o reportório todo, não? ahahahah
Mas não deviam ter desistido ... nessas coisas, insiste-se ahahah
Olá Rui
Vim saber o resto da aventura.
Claro que só podia acabar com este desalento e a vontade de nunca mais se meter em cantorias.
Muito divertida a sua narrativa.
Bjos
Amigo; desci só para satisfazer a curiosidade, e...ai que riso logo de manhã! Amei, como aind anão nos conhecemos, digo que sou surda desde os 6 anos, sempre li nos lábios, o que não deixou que isso intereferisse na vida que faço, levo, e sou uma pessoa normal, agora a ouvir graças a um implante, mas, só ouço há um ano, ainda não entendo o que dizem as palavras, mas, lá chegarei.
Não posso ainda dizer que cantam bem, têm boa voz, mas ao ler o texto, não me contive...amei aquela dos tais que se embebedaram plo caminho ahhhhh, que lindo, só por isso valia a pena ter assistido, estes homens, e estas mulheres, ah, como vai a nossa terra!, mas, foram momentos de leitura muito interessante. Um beijinho e tudo de bom, da laura
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