-Tudo começou de um modo suave, inocentemente e quase sem importância. A primeira vez que pensou, foi durante a festa de aniversário de um amigo de longa data e fê-lo apenas para descontrair. Inevitavelmente, um pensamento levou-o a outro e depois a outro e outro e apenas mais um e depois outro. De inicio apenas pensava socialmente, mas não demorou muito até que começasse a pensar quando estava sozinho. Nessa altura, dizia a si mesmo que era apenas um pensamento… para relaxar e que deixaria de pensar em qualquer altura que quisesse. No entanto, já não conseguia deixar de pensar e pensava o tempo todo.
-No escritório começou por fazer intervalos cada vez mais frequentes para ir à casa de banho para pensar sem que o vissem. Depois, começou a evitar os colegas à hora de almoço e procurava um canto onde pudesse ler Santo Agostinho, Gilles Lipovesky, Platão ou Habermas. Tinha já então consciência de que pensamentos e trabalho não se coadunam muito bem porque, quase sempre, ao voltar ao escritório se sentia tonto e eufórico e questionava-se acerca do que estaria ele ali a fazer.
-Em casa as coisas também começavam a não correr bem. Com frequência, desligava a televisão durante os concursos ou novelas e questionava a mulher acerca do pensamento individualista ou da existência divina. Numa noite dessas ,ela pegou nos miúdos e foi dormir a casa da irmã.
-Depressa ganhou a fama de ser um “pensador”. Uma manhã de segunda-feira o seu superior chamou-o ao gabinete para lhe dizer que apesar de gostar dele, o seu hábito de pensar se estava a tornar um verdadeiro problema e que se não deixasse de o fazer, teria que o colocar no quadro de excedentes. É claro que tal advertência ainda piorou mais as coisas dando-lhe muito em que pensar.
-Nessa mesma noite ao chegar a casa, confessou à mulher:
-Querida, sabes… eu tenho andado a pensar… – disse com a voz a tremer.
-Eu sei, bem tenho notado que já não pareces o mesmo, sempre ensimesmado e putativo. Eu não aguento mais e quero o divórcio.
- Mas… não podes falar a sério isto é um problema passageiro, vais ver que…
-Passageiro? – Interrompeu ela – Pensas tanto como um intelectual ou como um professor e toda a gente sabe que os professores e intelectuais são miseráveis.
-Isso é um falso silogismo. - Articulou ele antes de sair de casa batendo com a porta.
-Deixou o carro ao acaso no parque, correu para a porta chocando contra ela com violência e estrondo. A biblioteca estava já fechada aquela hora. Completamente tonto ergueu-se a custo e foi já por entre lágrimas de desespero que viu o cartaz na porta de vidro. Em formato A3. Lia-se dificilmente nele o seguinte: AMIGO, se o pensamento te destrói a vida. Se queres parar e NÃO CONSEGUES. PROCURA-NOS! Somos os PENSADORES ANÓNIMOS. TEM ESPERANÇA!
Apenas por causa desse poster é que hoje em dia ele é o que é: um pensador em recuperação. Não falta a uma reunião dos PA. Nelas, vêem vídeos não educacionais, a semana passada era uma intervenção da ministra da educação numa comissão parlamentar, na anterior fora um vídeo do Palhaço Batatinha. Depois trocam experiências pessoais e reflectem acerca do tema “como consegui evitar pensar desde a semana passada”.
-A vida agora parece-lhe melhor: já consegue ir ao futebol e ler o orçamento de estado; Já se não questiona acerca dos direitos essenciais, da liberdade de expressão, do direito à felicidade, à saúde gratuita e ao bom ensino. Na semana que passou conseguiu não pensar uma vez sequer em promessas eleitorais não cumpridas. Foi uma das suas maiores vitórias.
-Já não tem o seu emprego, é verdade, mas os sogros ajudam a pagar o T1 para onde a família reconciliada se mudou e até já consegue assistir a programas produzidos pela TVI.
-Ontem tomou a sua maior decisão: Vai voltar a votar PS nas próximas eleições!
Está definitivamente CURADO!
3 comentários:
Gosto. Do registro, do conteúdo, das ideias. Vou voltar.
Agora vejo por que razão a classe política é tão feliz neste país de faz-de-conta! Não perde tempo a pensar... Nem a contar os dias que faltam para o fim do mês!...
Um Xi Grande
[Belo texto. Parabéns!]
é sufocante, não é?
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