“A minha vida dava um livro!” Nunca o disse verdadeiramente mas mantinha a secreta esperança de que lho dissesse alguém algum dia.
Era homem para a meia-idade, que nunca ninguém tem a idade toda e presumir que metade é a idade que se tem é sinal de esperança de vida, mais do que uma qualquer estatística. Cabelo grisalho e bigode aparado. Devia em tempos ter possuído algo vagamente semelhante a um porte atlético de que ainda conservava não a aparência mas as recordações. Aliás, eram as recordações o que arrastava consigo para toda e qualquer conversa que tivesse. Os fantásticos e bem pagos empregos que tivera; as pessoas que conhecera com uma intimidade pouco credível; as viagens a quase todo o mundo especialmente ao Japão, “Ah o Japão…”; Os restaurantes requintados que frequentara e que eram tantos que nunca devia ter podido comer em casa uma refeição que fosse; as tascas onde provara mais petiscos deliciosos do que aqueles que a culinária comporta; as casas de fado onde ouvira todos os fadistas cujo nome fosse pelo menos conhecido dos jornais.
Tudo nele era grandioso, os gostos, as experiências, os lugares. Todos os monumentos eram monumentais. Todas as cidades eram capitais. Todos os factos inesquecíveis.
Logo que se sentava e ainda antes de ter cumprimentado os presentes, já contava algo que invariavelmente começava com um “EU” e decorria com entremeados “Eus” para terminar sempre com um outro “Eu” enfático no final. Isto, quando o final existia porque muitas vezes o fio do assunto cortava-se-lhe e ele partia numa qualquer deriva interminável por entre cônsules, comendadores disto e de além mar, artistas de teatro e revista ou empresários de renome e fortuna pessoal. Todos com carros de grandes marcas que só eles tinham naquele tempo e que ele conduzira por amizade. A todos descrevia as casas com detalhe, os tiques e manias, os maus ou bons hábitos e as virtudes e defeitos que tivessem. A uns conhecera-lhes as amantes, a outros os amigos ministros e a quase todos comprara, vendera ou negociara, pelo menos uma vez, algo importantissímo e todos lhe deviam pelo menos um favor de que ficaram gratos ad eternum.
A carreira dos filhos, que eram excepcionalmente dotados e a inteligência da neta ocupavam-lhe os espaços vazios que nos permitia ter.
Não se intitulava especialista em coisa nenhuma mas afirmava certezas acerca de tudo o que afirmava. Da navegação aérea à de cabotagem nada lhe passava ao lado e a distância entre dois pontos era “não uma recta como todos dizem mas sim uma curva” sem no entanto ter sabido explicar tal em condições que existem mas que ele não conhecia.
Tenho falado sempre no pretérito, não porque ele tenha desaparecido do mundo dos vivos ou lhe tenha sucedido uma desgraça qualquer mas apenas porque há dias atrás me fartei da sua arrogância, da sua sobranceria com toque de barro partido, da sua insultuosa mania de contradizer quem quer que fosse, sempre. Fartei-me de o ouvir interromper quem tivesse a ousadia de falar e sobretudo fartei-me de fingir que engolia as patranhas e milongas em que ele acreditava que acreditasse eu. Saturou-se-me a paciência para o seu ar insultuoso e ofendido quando era contradito e saturei-me eu dele.
Vai daí… disse-lho de frente: Não aturo imbecis!
Não o tenho visto mas sobretudo nunca mais o ouvi e tenho sido um pouquinho mais feliz por isso. IRRA!
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