As pontes de regresso a casa colapsaram; o futuro esbatera-se sob cores novas e as antigas empalideceram a cada raio de luar de cada nova noite. Tinha morrido o ultimo vislumbre do sonho, da sua ingenuidade e já nem a sua amarga inteligência lhe servia de refúgio. A sua única quinta-essência desaparecera sem rasto ou razão e era tudo o que ligava a um tempo perdido.
Não conseguia sentir dor alguma que não fosse física e estava tão longe no caminho do sofrimento que nem o ponto de partida lhe era uma memória palpável. Temia ter-se tornado numa espécie de monstro; um ser pendente entre o imoral e o amoral. Fóra do mundo ou sem correspondência com ele, sem reconhecimento dele e sem a sensibilidade necessária para viver nele.
Convivera sempre com os seus sentimentos mas sem os conhecer. Pelo menos de um modo exaustivo. Analisara-os sempre, autopsiava-os a cada passo e como quem esventra uma rã para lhe distinguir os detalhes anatómicos e a mutila a cada movimento, fizera-o a tudo o que sentira até ali. Era esse o procedimento que lhe permitia conservar a sua dignidade, juntamente com as suas ideias, a sua imaginação e as memórias, já que nunca confiara nas fruições tácteis ou nas palavras alheias.
Já tivera tantos reinícios na sua vida que qualquer hipótese de um reinicio qualquer era uma hipótese obscura e evitável, como se uma ferida por cicatrizar lhe mantivesse a convalescença sentimental em chagas vivas sob um emaranhado de ligaduras. A dor tinha tido escalas, mas a carne era sempre a mesma carne e a sua teimosia quase pueril em ignorá-la acabara por levar a melhor.
Olhou as horas e com um esgar desligou o computador e jurou nunca mais repetir o mesmo erro… novamente.