quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Viagem










-O homem de bigode farto junto à porta de saída.
-A senhora nova mas pesada, que espalhava o aroma de frango assado pelo autocarro, segurando como um tesouro o saco de plástico estampado de uma churrasqueira da baixa.
-Mesmo na minha frente, o adolescente com a pouca barba desenhada e o piercing, calcorreava com os polegares as teclas frenéticas do telemóvel; Parava apenas para lançar vislumbres à menina que lia interessada uma “Maria” qualquer.
-Do outro lado da coxia, dois ucranianos conversam com o volume e a convicção de quem não é entendido por mais ninguém.
-Um homem escondia o sono por detrás da bola e fingia ler, cabeceando a cada travagem.
-O habitual policia fardado, em pé ao lado do motorista, regressando ou a caminho da esquadra.
-O tipo cool, de blusão negro com correntes e penteado trabalhado com a prática de quem tem tempo em excesso, olhava as luzes da rua e sonhava com um concerto de heavy-metal qualquer.
-O vendedor, que hoje deixara o carro na empresa, entalado no fato a imitar corte italiano e que lhe era grande demais, a querer parecer mais alto do era.
-O informático, alternando entre o portátil, para impressionar, e o telemóvel. Falava mais alto do que os ucranianos, como se tudo fosse “importantíssimo e ele um verdadeiro líder.
-A professora, ainda jovem, com a pasta aos pés e as olheiras sob os olhos, lendo papeis ilegíveis e ar triste a cada leitura. Tinha cabelo escuro e franja e mordiscava a intervalos a usada esferográfica vermelha.
-Numa curva mais rápida deixou cair parte dos papéis, estava cansada. Apanhei-os e entreguei-lhos. É então que a sua face neutra e abandonada sorri. Olha-me e sorri.
-Já nos encontrámos hoje.
-Perdão? - Foi apenas o que consegui dizer e não sei que ar terei feito, embora tentasse sorrir.
-Já nos encontrámos hoje! …de manhã, à vinda, neste autocarro.
-Pois sim, deve ter sido isso mesmo.
-Esboçou um sorriso e arrumou os testes na mala.
-Saiu na paragem seguinte sem se voltar para trás. Quase a admirei, apenas por me ter tanto recordado alguém que lembro sempre.


Rui

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