---Tínhamos ambos o hábito de gastar as tardes de domingo em intermináveis conversas circulares, acerca do mundo e dos seus arredores recônditos. Cada um de nós, por motivos diferentes, detestava as neuras das tardes dominicais, em que as horas se arrastavam teimosamente até que chegava a altura de regressar a casa para o jantar. Nessa altura, a grande maioria dos cafés da cidade mantinha o hábito do descanso semanal no primeiro dia da semana e aquele onde nos acolhíamos era uma excepção rara e simpática; não era maior do que o espaço de uma sala pequena com um balcão ao fundo, mal iluminado e espelhado. Nunca combinava-mos as horas de chegar nem as de partida, chegávamos e íamo-nos embora com a naturalidade do acaso mas quase sempre simultaneamente.
---Eram tardes atiradas à leitura de semanários, de revistas e raramente de estudo como exigiria o bom senso da nossa actividade principal de então. A amizade era feita de pequenos desabafos, de contos e ditos, das frustrações e êxitos que a vida, de quem tinha vinte e poucos anos naquela altura, trazia nas marés das semanas civis. Fazia-se o balanço das noites de Sexta e de Sábado, comentava-se a semana política e maltratava-se a táctica futebolística.
Tornámo-nos mais amigos, mais sinceros e mais tarde, quando a vida nos alterou os domingos de tarde bastava um telefonema com a palavra “café” e uma hora marcada para que nos voltássemos a reunir para contar o êxito pessoal ou a tristeza romântica que nos alegrava ou afligia.
--Era um poço de calma como eu nunca serei. Por detrás da sua voz, sempre baixa, nunca se lhe lia uma ira, uma zanga profunda ou qualquer ódio a quem quer que fosse. Conciliava quase tudo e todos com a ponderação de um velho conciliador experiente e com o empenho de quem fizesse disso profissão. Era talvez o pior cozinheiro do mundo e um simples ovo estrelado significava para ele um desafio maior do que uma escalada vertical ou um mergulho em águas turvas e agitadas.
--Estive ao seu lado no altar quando casou; ainda ambos a destilarmos os vapores da sua despedida de solteiro. Lembro-me do nascimento dos seus dois filhos e de ter sabido, em primeira-mão, de cada uma das gravidezes desejadas e ansiadas pelo casal. Estive no funeral dos seus pais e irmão e nos aniversários familiares quase todos.
--Recentemente, estive horas a ouvi-lo contar as razões da separação e do divórcio. Tantas razões, tão estranhas e inevitavelmente tão diferentes das razões que me contou a sua mulher em outras tantas horas de conversa pesada. Como estas conversas são sempre tão pesadas. Recordo a impotência que senti, o quase desespero de voltar a não entender as pessoas, os argumentos e atitudes de cega obstinação de ambos e a tristeza profunda que tudo aquilo acrescentou a este ano de tristezas quase ininterruptas.
Ontem, soube que tinha caído nas escadas de casa e morrido de uma morte tão estúpida e inútil como apenas a morte de mais alguém chegado consegue ser. Hoje foi a enterrar e nem sequer era domingo.
É apenas outro dia mau deste interminável annus horribilis.
1 comentário:
a morte é quase sempre estúpida...
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